sábado, 1 de julho de 2006

Somos o que não se vê


Desde 2001 que recebo convites para participar de uma reunião de um programa especial. Abri o último e cheguei no local na hora marcada no papel. Disseram-me que cuidaria de um senhor bem idoso e que passaria apenas uma hora por dia com ele.

Fazia parte do tratamento o fato do sr. Marvin não poder me ver nem falar comigo. A primeira vez foi complicada, eu não sabia o que fazer direito e não conseguia entender a necessidade de ficar atrás de uma câmara, observando-o. Eu sentava na cadeira, registrava as reações dele e sessenta minutos depois voltava para casa.

Certo dia, já cansada desta rotina levei um punhado de envelope, folhas de sulfite e caneta. Comecei a escrever e tive a idéia de entregar algo para o senhor de quem olhava, não de quem cuidava (certas modernidades me deixam confusa!). Passei o envelope por debaixo da porta e ele abriu a cartinha:
— O senhor sabe que está sendo observado? – ele acenou confirmando que sim.

Como já havia passado mais do que a metade do tempo de permanência permitido no local, juntei tudo e fui-me embora. Afinal, eu havia perdido um bocado de tempo perguntando para os especialistas se estava autorizado enviar o tal bilhetinho para o sr. Marvin.

No dia seguinte, fiquei sentada, olhando para o senhorzinho, com os olhos inchados por acordar cedo. De repente, ele começou a balançar os braços e não parava de gesticular. Eu não entendia nada e, rapidamente, apanhei a minha pasta vermelha transparente e passei o envelope por debaixo da porta. Desta vez, uma caneta foi junto. No papel devolvido estava assim escrito:
— Sua letra está diferente. Sua letra é bonita, mas hoje está diferente.

Então respondi:
— Agradecida*. Está diferente porque escrevi muito rápido e minha letra muda de acordo com o meu estado emocional. Tudo muda, não é mesmo?

A partir deste dia, passávamos 1 hora conversando através de bilhetinhos. Ora, conversávamos sobre como nos sentíamos no dia. Ora, sobre literatura. Ora, ele esclarecia minhas dúvidas sobre o xadrez. Ora, sobre a evolução do tratamento dele. Dias, que ele só elogiava a minha letra. Ah! Isso era realmente engraçado, porque ele analisava letrinha por letrinha e sabia exatamente como eu me sentia naquele dia, tudo isso sem nunca ter me visto. Enfim, conversávamos sobre o que, geralmente, não temos tempo de conversar com pessoas clinicamente livres do nosso dia-a-dia. Tudo o que fazíamos não passava de pros(e)a(r).

Então, num dia em que ele parecia um pouco preocupado, ele resolveu perguntar a minha idade, eu respondi sem nenhum problema. Nós continuamos a conversar dentro do limite estabelecido, como sempre. E no final deste mesmo dia, o médico-chefe me ligou cancelando o programa e agradecendo pela participação.
— Tá?! Eu não gosto de acordar cedo mesmo – sacudindo os ombros e resmungando outras coisas a mais em pensamento.

Uma semana se passou e lá estava eu, acordando todos os dias mais cedo, enfrentando a câmara fria e escrevendo os bilhetinhos. Simplesmente, porque o sr. Marvin não foi com a “cara” da outra voluntária.

* Não digo “obrigada” porque não sou obrigada a nada.

7 comentários:

Anônimo disse...

Gostei do texto... Da forma como podemos conhecer (e por que não gostar?) pessoas sem que nunca as tenhamos visto. Tal qual acontece na internet. E como é sutil a forma com que criamos laços uns com os outros... Bjs.

Anônimo disse...

oi
vi seu blog no da lizzie
beijos

Anônimo disse...

Olá!Desculpe-me o recado rápido, mas é para avisar que meu blog mudou de endereço e agora é site(com blog junto)! Estou esperando você por lá! Beijos :*

Anônimo disse...

Amei seu coments no meu blog... acho que sou forte sim

estou adorando vc
obrigada

Anônimo disse...

Realmente o Sr.Malvin me parece uma pessoa bastante encantadora.Mas não compreendi o motivo de ele estar em tratamento...Quê ele tem?
E você me parece uma pessoa mais encantadora ainda, sabia?!? Gosto muitíssimo de ler o que você escreve, me traz ótimas sensações!
Beijos :*

Adam Flehr disse...

Oi "mulher ímpar de poucos 21 anos"... rss...
viu? eu presto atenção nas alterações (ou upgrades?) de seu perfil!!! rsss

Esta estória é fantástica, é sobre relacionamentos humanos, livres dos paradigmas tradicionais, como visão, proximidade, etc... estou certo?
Parabéns, gostei muito! Curta as férias e escreva mais!

b-joos!

Tamara Queiroz disse...

Está certíssimo!